Saudades de não sei o que

Pensei bem e decidi: vou largar a barra da saia da mamãe. Deixar para traz a cama sempre arrumada, as roupas limpas, o leite no pires. Não quero mais ganhar presentes sem merecer, nem afagos a qualquer hora do dia. Me cansei dessa vida de filho unico. Estou com saudades de não sei o quê, só sei que é de coisa que não vivi. Não quero mais gastar meus dias em livros. Não quero mais perder a noção do tempo imerso num mundo que não é meu. Preciso descobrir o que existe do outro lado; sentir o perigo perto. Quero sentir medo. Quero sentir paixão; sentir o sangue pulsando agitado na ponta dos pés às orelhas.
Quero a prova de que tudo o que ouço é verdade. Quero experimentar novos sabores... azedos demais, salgados demais, amargos... Preciso de um corte no dedo que cicatrize sem curativo. Preciso esperar no ponto por um ônibus que não vai chegar nunca; e vou olhar para relogio mil vezes enquanto isso. E quando todas essas coisas ja forem rotina para mim vou correr na chuva, chorar ouvindo uma musica, pegar um resfriado, ficar na cama sentindo a solidão, esperar telefonemas que não vão acontecer.
Mas quando a felicidade me pegar de jeito, vou senti-la plenamente em cada poro, em cada célula do meu corpo. E celebra-la, como se eu pudesse ser o ultimo no mundo a senti-la.
Abro os braços, inspiro fundo e me lanço da janela. Quatorze metros e meio até o chão. Restam seis vidas.

Ana Angélica Martins




Fofo e deixa beijar

Fez uma promessa a si mesma: ia parar de roer as unhas. Fácil não ia ser. Tudo começava pelas cutículas; especialmente as dos indicadores e mindinhos. Era uma tentação! Derepente surgia uma pontinha de cutícula em um dos dedos, e aquela coisinha de nada ficava raspando na roupa, em tudo que é lugar e incomodava. Ai iam os dentes entrar em ação... Falta de alicate de unha não era; havia um e era bem amolado. Mas ela era muito anciosa e para isso não havia ferramente de manicure que desse jeito. O primeiro dia passou sem dificuldade; ela se viu levando a mão à boca apenas uma vez. O segundo fora, talvez, o mais dificil: porque além das pontinhas de cutícula a brotar, dava para ver o branquinho das unhas crescendo. No terceiro dia, à noite, a gengiva e os dentes coçavam de vontade de limar os cotocos de dedos. Oh, semana desafiadora aquela! No auge de seus 11 anos de idade ela ainda não trabalhava, mas fazia uma coisa ou outra para a mãe e as vizinhas e ganhava algum trocado. Faxinava, fazia compras e era uma espécie de office girl de vez em quando. Em poucas semanas conseguiu juntar dez reais. Com o dinheiro ela pretendia ir ao salão de beleza do bairro e pela primeira vez deixar as mãos e pés aos cuidados de uma profissional. Tomou banho, lavou os cabelos, pôs umas de suas melhores roupas e foi ao "Linda Mulher" na terça feira, dia de promoção. Ao invés dos dez, gastaria apenas oito reais lá. Pediu "fofo" para as unhas dos pés, e "Deixa Beijar", um vermelho intenso nas mãos. Nunca se sentira tão bonita! Pagou, foi dar uma volta, comprou um picolé de chocolate e se sentia a pessoa mais feliz do mundo. Quando jogou o palito fora percebeu o quão descuidada fora ao desembrulhar e entregar-se tão completamente à delicia gelada: todo o trabalho nas unhas das mãos estava perdido. Deu vontade de chorar, mas pensou melhor e se deu conta de que havia conquistado uma pequena vitória. E descobriu podia muito mais.

Ana Angélica Martins




A Viagem

Através da janela eu espiava as estrelas que brilhavam cintilantes naquele dia de céu escuro. Filmes desconexos passavam apressados pela cabeça, e a paisagem lá fora, as árvores do cerrado que eu tanto apreciava das outras vezes, se afiguravam sombrias emudecidas. Nesses momentos é comum refletir sobre a vida, fazer planos, ter saudade dos que ficaram na rodoviaria com lágrimas nos olhos.
O passageiro ao meu lado abre e começa a decorar o pacote de biscoitos de polvilho, não sem antes ter-me oferecido alguns, com a boca já cheia. A criança inquieta que viajava ao lado da mãe, nas poltronas da frente, também decide abrir o saquinho de batatas; quase ao mesmo tempo que o rapaz de boné que durmira com o disc man ligado despertou e desembrulhou logo um bombom. Aquele silêncio de morte fora interrompido pelos insistentes maxilares daqueles viajantes. Meus pensamentos à mil e meu estômago embrulhando com todo aquele cheiro de comida industrializada. 
Eu ali, com vontade de chorar por todos os motivos do mundo. Um nó prende a voz na garganta. Não me permito esboçar nenhuma dor ali, no meio de tantos desconhecidos. Uma possibilidade se apresenta de súbito: e se outra fatalidade acontecesse naquele exato momento? Se houvesse uma colisão entre o ônibus e um outro veículo de dezenas de toneladas? 
Nem uma nuvem no céu. Após a tétrica viajem mental que fiz, faço questão de esfregar bem os olhos e certificar-me de que todos estão bem. Vivos. Respirando. Numa das poltronas la na frente um senhor muito bem vestido lê. A maioria apenas dorme. Sou tomada de novo pelo mesmo pensamento pavoroso; se algo acontecesse e morrêssemos todos juntos, para onde iriamos, afinal? Seria possível encontrar os entes queridos que já partiram há muito? E os que partiram há pouco, de surpresa, cuja perda parece nem ter sido registrada pelos sentidos, que parecem anestesiados? Há de fato alguem nos esperando em algum lugar? Com vestimentas claras, feições angelicais e tempo infinito para nos explicar pacientemente os mistérios inacessíveis aos mortais da Terra?
Não tenho medo de morte. Tenho medo de solidão. Não essa solidão a que já acostumamos; de ver rostos mas desconhecer as identidades, os desejos, os defeitos, a essência. Acostumei-me a ver sem enxergar. Todos nos acostumamos. Falo da solidão absoluta; da completa impossibilidade de comunicar-me, manifestar sentimentos; tocar e poder perceber as coisas. Choro. Começo a soluçar. Como criança, exteriorizo todo o pesar da perda, e a angustia que fustigava meu peito. Olhares discretos e prestativos são dirigidos a mim. Não pronunciei palavra, mas foi como naquele momento todos ali soubessem o motivo exato do meu choro; complacentes, como se dispusessem-se aquela dor comigo.
Da janela entreaberta um vento calmo toca meu rosto. Fui placidamente respondida. Nunca estamos sózinhos.

Ana Angélica Martins

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